domingo, 24 de agosto de 2008

Untitled

Não me sinto bem. Sempre na fresta, no instante roubado, esperando o momento certo de agir, a calcular. Heróis e covardes se separam e eu estou no meio do caminho, me recuso a seguir a multidão. Venho no sentido contrário, sem encostar-me em ninguém. As trevas em que vivo não são maiores do que as trevas que habitam minha mente. O lar não é onde está o meu coração; aqui não é o meu lar. Deito-me na cama, mas minha cabeça não está descansada sobre o travesseiro. Erguido sobre vestígios degradados do meu passado, eu sou maior do que aqueles que me cercam, por isto, eu não mereço estar aqui, e se estou, as cortinas deverão permanecer fechadas. O mundo não pode me ver assim tão intimamente, descontando meus fantasmas naqueles que me desafiam com um simples olhar. Ainda não saí à caça deles. Fantasmas que em mim encontraram um lar, e não pretendem se mudar, pois há alguém para alimentá-los. Um homem que, como eu, será para sempre deslocado, lutando contra um anormal instinto de usar a lâmina. Sangrando ele se sente vivo. Púrpuras gotas de vida, colorindo a palidez mórbida de braços que nunca viram um raio de sol. Existe alguma vida antes da morte?

domingo, 27 de julho de 2008

Gabriela Dotto

                  Foi num fim de tarde tempestuoso de sexta-feira. Snape lembrava-se que era este o dia da semana porque eram nas terríveis sextas-feiras que enfrentava sonserinos e grifinórios do sétimo ano, juntos em um mesmo horário. Adolescentes, a pior raça. Cheios de si, arrogantes, patéticos e atrevidos. Pensam que são donos do mundo e que este gira ao redor de seus narizes empinados. Na antipática luta de egos, ele era o ancião incumbido de baixar todas as bolas. Principalmente as grifinórias, que eram as mais altas. Ao final da aula, deixou a sala de Poções nas masmorras e lá ficou toda a sua paciência. O desavisado – para não usar outro termo – Longbottom havia misturado grande parte dos ingredientes do armário que Snape trazia impecavelmente organizado, numa simples tentativa de procurar um bezoar. Ele ainda se perguntava se vinte pontos teriam sido de bom tamanho. Convenceu-se de que não, da próxima tiraria trezentos. Hoje ele nem cogitaria aparecer para o jantar.
                  Não tinha certeza se ainda havia em Hogwarts algum livro literário que ele não conhecesse de trás para frente, mas, esperançoso ele tirou, dos confins de seu baú, a bandeira do otimismo e seguiu até a biblioteca. O som da chuva forte era uma música, ecoando pelos corredores. E ele, oposto de um relâmpago, trovejava silenciosamente, obscuro, esgueirando-se de qualquer possibilidade de interação com quem quer que fosse. Mas parecia ser em vão. Os inconfundíveis passos arrastados logo pararam à sua frente, parecendo felizes por terem o encontrado. E a voz asmática falou antes de ser convidada.
                  — Professor Snape, até que enfim o encontrei. Você nem vai acreditar no que Pirraça fez hoje. Depois dessa tenho certeza que...
                  — Não quero saber, Filch. Saia da frente. — rosnou Snape com grosseria, contornando a molambenta silhueta do zelador e de Madame Nora.
                  Hoje ele apenas iria ler. Biblioteca lotada, grande desgraça. Na verdade o culpado era ele que passara quilômetros de trabalhos para os alunos de todas as séries. Muito bem, era exatamente o que deviam estar fazendo. Ótimo. Estufou o peito e entrou, tentando não chamar muito a atenção. Lançou um olhar de pouco caso a um grupinho de lufanos do primeiro ano que, ele percebeu, prendeu subitamente a respiração. Mal olhou na cara de Madame Pince. O cheiro de livros era uma das poucas coisas que o agradava naquela escola – ainda – e foi quando deslizava aqueles dedos compridos e de pontas meio amareladas em um exemplar de Arsenius Jigger que ele a viu por entre as prateleiras. Ajudava uma menina miudinha e esquisita da corvinal a encontrar algum livro e parecia dedicada em fazer isso com prazer, ainda que atrapalhada em meio a tantos livros. Mas, obviamente, não foi o que ela fazia que chamou a atenção de Snape e sim como ela fazia. E o sorriso. Ele não se lembrava de nenhum sorriso que gostasse de ver. Sorrisos bestas que o enojavam. Mas o dela não, o sorriso dela parecia convidar a boca dele. Ela era linda, o rosto enfeitado com dosadas sardas e moldado por cabelos negros como os dele. Nem tanto. Os dela brilhavam soltos e Snape imaginou qual seria o cheiro deles, o cheiro dela. Precisava sentir. Baixou o olhar para a impecável saia preta, tipo de secretária. Na medida certa ela havia sido esculpida exatamente ao gosto dele, e o desejo estampou o comprido e macilento rosto. Nunca soube exatamente por quanto tempo permaneceu ali, mas foi desde aquele dia que passou a vê-la com outros olhos. Olhos de indisfarçável cobiça. Gabriela!, alguém a chamou.

                  Snape acordou com flashes de um sonho confuso na cabeça e lutou contra a vontade de voltar a dormir, só para ver se voltaria ao sonho. Na noite anterior, adormeceu ao ler pela quarta vez a mesma página de um livro tolo. Nas entrelinhas ele via o rosto dela, como vira pela fresta da prateleira. Ela o chamava com olhos famintos, ele ia. E quando ela começava a desabotoar os botões das vestes dele, os alunos invadiam a biblioteca com Filch, Minerva e Dumbledore. Não, ele sinceramente não queria sonhar isso de novo.

                  A chuva fora embora, deixando um cheiro de terra úmida e grama molhada. Com as imagens do sonho ainda bombardeando sua mente, Snape apareceu para o café da manhã, alguns cinco minutos depois do horário. De um lado, o professor Flitwick, sentado em exatas sete almofadas, comia feliz sua torta de maçã, balançando pateticamente as perninhas no ar. Do outro, Madame Hooch bebia um suco com cara de poucos amigos. Snape agradecia por ela também parecer detestar tagarelar pela manhã. Recusou as novidades gastronômicas que Dumbledore sempre tinha a oferecer apenas com um meneio de cabeça e serviu-se de uma xícara de café, mas antes que pudesse levá-la a boca, Dumbledore se levantou animado. Snape fez um grande esforço para prestar atenção. Então hoje, trinta e um de maio, era aniversário da Srta. Dotto! Interessante. Um mar de palmas se seguiu, as palavras do diretor já não eram mais claras. O queixo apoiado sobre os dedos e um calor que não provinha do clima. Os infinitos túneis negros estavam fixos no olhar jovial da Gabriela.
                  Flitwick comentou alguma coisa inútil com ele, fazendo-o desligar a fonte quase visível de comunhão irresistível entre os olhares. Snape ergueu a sobrancelha e resmungou algo como hum. Quando voltou a fitá-la, ela conversava aos risos com o monitor-chefe da Grifinória. ■

O encontro depois do baile - parte I

        A experiência de morar sozinho estava sendo melhor do que Snape poderia ter imaginado. O silêncio reinava sem a incômoda presença do pai. Antes do banho, ele já havia organizado a bagunça de frascos e ingredientes que fizera mais cedo no quarto. O pequeno cômodo retangular não era provido de muita claridade. Mesmo quando o sol estava forte, uma árvore que quase chegava a encostar-se na janela retinha todos os raios de luz. E agora, por entre as folhas do salgueiro Snape via aquela tarde que passara pesquisando alguns antídotos chegar ao fim. Ali, em seu quarto apertado, ele reparava em como seu acervo de livros vinha crescendo. Já não cabiam mais na estante velha que herdara do pai. Agora parte deles estava empilhada ao lado da cama de solteiro, fazendo as vezes do criado mudo. Em cima deles, um copo com um resto melado de suco de abóbora pregado ao fundo e alguns farelos de torrada revelavam a única refeição que ele tinha feito o dia todo. Ao lado do copo havia um timbrado envelope verde musgo, que uma coruja parda havia entregado semanas antes. Era um convite endereçado a ele.
        Ao abrir um guarda-roupa feito de cedro, a porta pesada chocou-se com a estante trabalhada em madeira escura. A falta de espaço o irritava mais do que o forte estampido dos móveis. Snape vestiu uma camisa indiscutivelmente branca de mangas compridas por cima da calça preta de veludo cotelê. De uns tempos pra cá começara a se vestir melhor e até usava uma essência amadeirada que ele mesmo tinha preparado. Só iria à festa de Avery por falta de algo melhor a fazer. Apanhou a varinha em cima da cama e a guardou no cós da calça, do lado direito. Olhou inexpressivo seu reflexo no espelho, não via muita coisa além do macilento e pálido rosto, coberto pela cortina de cabelos negros que agora lhe batiam nos ombros.
        Snape aparatou perto de um jardim que conhecia bem, a uns quatro ou cinco quarteirões da casa do amigo. A paisagem exuberante parecia zombar dele, que há segundos atrás se encontrava na Rua da Fiação. Iria caminhar até o local do aniversário para ganhar tempo, não cogitaria a hipótese de ser o primeiro a chegar. Foi quando viu, a alguns metros de distância, que cabelos acaju contrastavam harmoniosamente com o azul do lago. Ela parecia fazer parte da paisagem. Suas pernas não esperaram o comando da mente, quando deu por si, já caminhava silenciosamente até a moça. Com a mão gelada ele tocou o ombro dela, no momento em que se abaixou, inclinando o rosto até ela, sem que, realmente, tivesse chegado à conclusão de que deveria fazer isto. As palavras macias de Lily enviaram ondas quentes que percorreram todo o seu corpo esguio, começando pelos ouvidos.
       – Sou eu, Lily – a voz baixa e aveludada de Snape tocou o rosto dela, perto do ouvido.

Incompleto resumo do conto (...)

                  Díspares roupas de trouxa, magro, cabelos muito longos. Mal cuidado, repugnante, ainda assim impressionante. Brigas. Presenciou muitas. Não participava, não ainda. Aprendeu a se proteger para evitar a dor. Desde a infância, fechado, não a visão de mundo, o coração, a alma, a mente. Grande alma. Ainda sonhava, tinha os pés no chão. Adeus terrível bata, agora, um uniforme. Sonserina, a melhor casa. Nunca foi fácil, ninguém disse que seria, ele também nunca acreditou. Retraído, apelidos, azarações. Por causa da aparência, ele sabia. Mas e o talento? Inteligente, acima da média, excêntrico. Poções. Um livro, anotações, a própria denominação. Desprezo, sarcasmo, impropérios. Não era a única coisa que ele tinha a oferecer. Não a ela. Inteligência nunca faltou, a usou de todas as formas. Personalidade forte, típica, só dele. Calculista, gélido, imponente e sério, uma máscara, não aquela que se veste, mas aquela que se forma. Ele errou, um erro fatal. Mas aprendeu, voltou mais forte, mais fechado, mais audaz. Lealdade, acima de tudo, a ele mesmo. Não na minha aula ele dizia. DETENÇÃO. Pontos a menos, ordem, moral. Fez muito, para não ser em vão, para o próprio bem, pensando em si. Na sua alma. Humanidade? Quando a tiveram? Ele teve.